TENDÊNCIAS ACELERADAS A pandemia de coronavírus vem antecipando transformações que levariam anos, talvez décadas, para acontecer. São mudanças comportamentais e tecnológicas que permeiam o dia a dia da sociedade entenda como será o novo normal em áreas como trabalho, negócios, consumo, saúde e educação POR RICARDO LACERDA Aproxima epidemia? Não estamos preparados. Esse é o título de uma palestra dada por Bill Gates paraoTEDTalks em 2015. Disponível no YouTube, a apresentação viralizou na quarentena e chegou a ser considerada profética. Em oito minutos, o fundador da Microsoft explica por que a sociedade está mais exposta a vírus do que a guerras, e faz um apelo para que os governos invistam com mais vigor em pesquisas sanitárias. “Não há razão para pânico, mas precisamos nos apressar", afirma. Não se tratava de um alerta isolado. Havia bastante tempo que a comunidade científica previa um evento dessa magnitude. Agora concretizado, ele estabelece um antes e um depois na história da humanidade. A declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março, colocou a vida como a conhecemos em suspenso: trabalho, escola, viagens, relações, consumo praticamente tudo foi impactado. A necessidade de distanciamento social levou mais de 4,5 bilhões de pessoas a algum tipo de isolamento. E a inesperada mudança de rotinas está antecipando transformações que eram projetadas para ocorrer daqui a muitos anos. Nesse futuro acelerado, enquanto a ciência não descobre uma vacina contra a Covid-19, a sociedade experimenta o que se convencionou chamar de novo normal. FUTURO: TECNOLOGIA HUMANIZADA Com a finalidade de avaliar o impacto da crise do coronavírus nos negócios, a revista Fortune divulgou em maio uma pesquisa com CEOs das 500 maiores empresas dos Estados Unidos. E os resultados não são nada animadores. Para 60% deles, a atividade econômica só voltará aos níveis de antes da pandemia em 2022. Outros 27% acham que isso acontecerá apenas em 2023. A reticência diz respeito, sobretudo, às incertezas que pairam sobre o enfrentamento da doença. Na mesma semana, uma reportagem da The Economist apresentou o conceito de Economia de 90% segundo o qual, depois das quarentenas, o mundo deixará de gerar 10% de riquezas em razão dos novos hábitos e comportamentos da sociedade. Em situações assim, é natural que governos ajam para evitar um cenário de depressão social. A principal medida é injetar recursos em planos de recuperação. Até meados de abril, a somatória global das políticas de estímulo adotadas pelas nações atingidas pela Covid-19 chegava a US$ 10,6 trilhões. Para se ter uma ideia da dimensão, o plano Marshall, criado pelos EUA para auxiliar a Europa após a Segunda Guerra, era oito vezes menor segundo cálculo da McKinsey. A maior parte dos recursos é direcionada para suprir necessidades básicas dos cidadãos, preservar empregos Apesar do drama da saúde e do quadro de fragilidade econômica, a pandemia deixará legados positivos. O mais marcante será a transformação tecnológica, impulsionada pelo isolamento social. Segundo o especialista em cultura digital Cit Giardelli, membro da Federação Mundial de Estudos do Futuro (WFSF, na sigla em inglês), antes mesmo do coronavírus o mundo passava por uma transição para a Sociedade 5.0. A ideia amplia o alcance da Quarta Revolução Industrial e prevê a massificação de soluções como big data, inteligência artificial (IA) e robótica em favor do bem-estar humano. "É uma transformação nunca vista, que coloca as pessoas no centro de tudo, com inovação, integração e inteligência. Agora, com a Covid-19, isso vai ser muito acelerado", explica. Também conhecida como Sociedade Superinteligente, a Sociedade 5.0 foi cunhada pelo governo do Japão cerca de cinco anos atrás. Mas quem aparece na dianteira de sua propagação é a China, através do projeto Cinturão Econômico da Rota da Seda (Belt and Road Initiative, em inglês), que prevê investir cerca de US$ 1 trilhão em mais de 100 países até 2027. Os aportes incluem estradas, portos, ferrovias e outros empreendimentos de infraestrutura. Mas a revolução prometida está nas redes de quinta geração de internet móvel. "O que a Inglaterra e os Estados Unidos fizeram na primeira e na segunda Revolução Industrial, com navios e estradas de ferro, agora será feito pela China com redes de 5G", diz Giardelli, que é roboticista e professor em 23 CAPA O mundo já passava por um movimento de automação, mas a partir de agora isso será ainda mais acelerado, com as pessoas no centro de tudo com mais inovação, integração e inteligência. GilGiardelli, especialista em cultura digital e membro da Federação Mundial de Estudos do Futuro (WFSF) Foto: CloudMinds / Divulgação instituições como ESPM e PUCRS. O potencial tecnológico chinês ficou evidente nos esforços para achatar a curva de contágio. E provou que o país caminha a passos largos para se tornar líder global em IA até 2030 conforme plano anunciado em 2017. No país asiático, a liberdade pós-quarentena cobra seu preço por meio de soluções disruptivas: o monitoramento da população, por exemplo, é feito por ferramentas da saúde baseadas em IA e cálculos de big data. Ao refletir sobre o mundo pós-pandemia em artigo no Financial Times, o historiador e filósofo israelense Yuval Noah Harari,autorde27 Lições para o Século 27, se diz favor dousodetecnologiasque beneficiem a saúde pública. Entre elas,ferramentas de monitoramento como as da China. "Se eu pudesse rastrear minha própria condição médica 24 horas por dia, aprenderia não apenas se me tornei um risco a outras pessoas, mas também quais hábitos contribuem para minha saúde", assinala. Harari, entretanto, faz a ressalva de que esses recu rsos não pode e m se r u ti lizad os para a criação de um Estado ultra vigilante e totalitário. Em linha com esse conceito, o professor André M iceli, coordenador do MBA em Marketing, Inteligência e Negócios Digitais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), destaca que a transformação digital ajudará a humanizara tecnologia. "Vivemos muito tempo a discussão infundada sobre a tecnologia, se ela aproximava ou distanciava as pessoas. Mas se ignorava o aspecto humano, que decide o que fazer com ela", afirma. NEGÓCIOS: SOBREVIVÊNCIA E TRANSFORMAÇÃO Ao reconfigurar hábitos e rotinas, o isolamento social abre 24 [BRÀSIL-HJUNHODE202 A NECESSIDADE SE IMPÕE Depois de anos em debate, em março a telemedicina foi regulamentada em caráter emergencial no Brasil. Ainda que o uso de tecnologias interativas para o atendimento médico esteja válido apenas na pandemia, especialistas são unânimes ao dizer que a modalidade veio para ficar. AS TRÊS MODALIDADES AUTORIZADAS NA PANDEMIA SÃO: TELEORIENTAÇÃO Permite que médicos orientem a distância pacientes em isolamento. TELEMONITORAMENTO Sob supervisão ou orientação médica, possibilita acompanhar remotamente parâmetros de saúde e doença. TELEINTERCONSULTA Autoriza a troca de informações e opiniões entre médicos, a fim de auxiliar no diagnóstico ou na terapia. POLÍTICA PRÓ-SAÚDE China e índia são dois dos principais fornecedores mundiais da área da saúde, desenvolvendo insumos para a fabricação de medicamentos, itens de proteção individual e equipamentos como respiradores artificiais. O contexto de pandemia levantou dúvidas quanto aos rumos da globalização, evidenciando vulnerabilidades na política industrial de vários países. Mas Cláudio Porto, da Macroplan, não apostaria em um futuro marcado pelo fechamento de fronteiras. "O processo de globalização tem muito mais ganhos do que perdas. O que deve acontecer é o aumento da regulação", acredita. Daí a importância de se manter estoques estratégicos, algo semelhante ao que acontece com a indústria de Defesa que se resguarda ao manter parte da produção internamente. Nesse sentido, o Brasil pode estar diante de uma janela de oportunidades única para renovar o complexo industrial da saúde. "Aspectos como demanda crescente e a emergência de se construir uma agenda de saúde como prioridade apontam para uma área muito dinâmica", diz Porto. Para isso, seria necessário desenvolver uma política industrial focada e com tempo predeterminado, além de abrir um amplo diálogo entre poder público, setor privado, comunidade científica e órgãos reguladores. Em relatório recente, a McKinsey inclusive vislumbra uma maior intervenção estatal na saúde, a fim de equipar os países para enfrentar futuras pandemias. bitantes, o Brasil é o único com atendimento gratuito e universal à população. "O setor tem buscado economistas e gestores qualificados, o que vai ajudar a melhorar a alocação dos recursos. É a chance de o país finalmente dar um salto", afirma Porto. Prova de que esse amadurecimento não precisa vir exclusivamente do governo é a aliança Todos pela Saúde, criada pelo Itaú Unibanco para auxiliar no enfrentamento da Covid-19. Comandada por um grupo de especialistas, a iniciativa tem orçamento de R$ 1,2 bilhão e não encerrará quando a pandemia for superada. A garantia vem do cirurgião Paulo Chapchap, diretor-geral do Hospital Sírio-libanês e líder do Todos pela Saúde. Segundo ele, um dos focos será o desenvolvimento de iniciativas que ajudem na capacidade de resposta do Sistema Único de Saúde (SUS) a desafios futuros. Outra ideia é melhorar o processo de governança da saúde pública nacional. "Não se trata da substituição do Estado, mas de uma parceria para a estruturação do SUS. É preciso conhecer bem as demandas e a capacidade de supri-las." SAÚDE: CIÊNCIA FORTALECIDA No começo de junho, pelos cálculos da OMS, havia aproximadamente 100 vacinas contra a Covid-19 em desenvolvimento mundo afora. A maioria delas estava em fase de testagem, mas algumas traziam perspectivas de chegar ao mercado entre o fim de 2020 e o começo de 2021. Em cenários normais, uma vacina costuma demorar ao menos uma de- 28 [BRÀSIL-H JUNHO DE 202Cf cada entre o começo das pesquisas e a imunização populacional. Logo, não seria errado dizer que, em termos científicos, o coronavírus está encurtando a distância até o futuro. "Estamos evoluindo rapidamente nos conhecimentos, nos protocolos. Há estudos multicêntricos sendo feitos para beneficiar o mundo inteiro", destaca Chapchap, do Sírio-Libanês. A emergência sanitária tem feito a sociedade cobrar por maior atenção e recursos para a saúde. E essa atenção não se resume a dinheiro. Ainda que autorizada em caráter excepcional, a telemedicina ganhou popularidade no isolamento social. "Não há dúvida que a modalidade veio para ficar, até porque os grandes bloqueios no ambiente regulatório devem desaparecer", acredita Chapchap. Segundo ele, a medicina remota precisa funcionar como ferramenta adicional, que não anula o contato tradicional entre médico e paciente. "Ela potencializa a capacidade do sistema e permite beneficiar populações mais isoladas, por exemplo." Desde 2018, o Sírio-Libanês desenvolve o projeto Regula Mais Brasil, que se vale da telemedicina para apoiar médicos em unidades básicas de várias localidades do país. TRABALHO: FLEXIBILIDADE E RESULTADOS Se uma área tão relevante quanto a medicina pode se aproveitar da tecnologia para funcionar a distância, o que dizer de atividades que dispensam o contato pessoal? Pois é nessa toada que o teletrabalho invadiu as residências. Um exemplo é a disparada do uso de plataformas de colaboração e aplicativos de teleconferência. Quando a OMS declarou pandemia, a plataforma Microsoft Teams tinha em média 32 milhões de usuários por dia. No fim de abril, esse número era de 75 milhões. "Vimos dois anos de transformação digital em dois meses", disse Satya Nadella, CEO da empresa, na divulgação de resultados. A solução de videoconferências Zoom deu um salto ainda maior: de 10 milhões para 300 milhões de participações diárias em suas salas de reuniões. Para não ficar para trás, o Facebook lançou o Messenger Roms e expandiu as funcionalidades de videochamadas do WhatsApp. Já o Coogle atualizou o Duo, permitindo que mais pessoas participassem das salas de reunião e bate-papo, e retirando a exigência de que todos os usuários tivessem o app baixado. Além disso, inúmeras ferramentas até então pouco conhecidas ganharam popularidade. Tendência que evoluía aos poucos, o trabalho remoto se tornou solução de ocasião para manter milhões de negócios funcionando. "É um caminho sem volta", assinala André Miceli, da FCV. Para o professor, depois da pandemia cerca de 30% das organizações deverão aderir em definitivo ao modelo híbrido que intercala trabalho em casa e no escritório. Com o rompimento das barreiras que freavam o home Office, seus benefícios ficarão ainda mais evidentes. Enquanto o colaborador ganha autonomia e flexibilidade, a empresa pode enxugar custos com estruturas desnecessárias. De quebra, a menor circulação de pessoas nas ruas, ou em horários alternativos, melhora a mobilidade e pode até reduzir a emissão de poluentes. Uma pesquisa da Fundação Dom Cabral (FDC) em parceria com a consultoria e auditoria Grant Thornton aponta que mais da metade dos 700 respondentes (54%) pretende seguir em trabalho remoto após a pandemia. Contudo, Gil Giardelli destaca que é preciso encontrar um ponto de equilíbrio nessa travessia. "Devemos chegar a um meio termo, pois haverá o entendimento de que não será mais preciso ficar na empresa das 8h às 18h." As operações remotas incluíram até mesmo o governo. Nos primeiros meses de isolamento, a Os governos devem arregimentara sociedade civil para que ela apoie ou discuta, que faça evoluir o conjunto de ideias e conceitos da gestão do Estado. Não deve haver separação entre responsabilidades exclusivas do governo e da sociedade, e sim uma maior capacidade de leitura, dos dois lados, das necessidades sociais e governamentais. Paulo Chapchap, médico, diretor do Hospital Sírio-Libanês e líder do movimento Todos pela Saúde á “Aprendizagem não é apenas transmitir conteúdo. Precisa ter interatividade, mediação, discussão entre pares. Lúcia Dellagnelo, diretora-presidente do Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb) União colocou mais de 100 mil servidores em home Office. "Mudamos drasticamente a forma de trabalho e estamos abertos à inovação e colaboração com o setor privado", explica Paulo Uebel, do Ministério da Economia. Brasil afora, câmaras municipais, assembleias legislativas e o Congresso experimentaram uma inédita mudança para o virtual. E votações importantes, como das medidas de auxílio à economia e à sociedade na Câmara e no Senado, foram feitas a distância. "Esta realidade serviu de estímulo para ampliarmos as discussões sobre a reestruturação do serviço público no país. O governo pós-coronavírus será muito diferente, muito mais digital e focado em resultados", acrescenta o secretário. Responsável pelo estudo Tendências de Marketing e Tecnologia 2020, lançado em abril, André Miceli aponta que o trabalho remoto aumenta a produtividade de 15% a 30%. Mas a estimativa é válida apenas em tempos de normalidade. Durante uma pandemia, é natural haver dificuldade para o estabelecimento de rotinas eficientes. Ainda assim, há quem já esteja aproveitando muito bem a nova condição. Prova disso é o fato de que 31% dos respondentes da pesquisa da FDC VEM AI A ERA DO TRABALHO HÍBRIDO Entre abril e maio, a Fundação Dom Cabral (FDC) e a consultoria e auditoria CrantThornton divulgaram os resultados da pesquisa Covid-19 Home Office Trabalho Remoto. O levantamento se baseou nas respostas de 705 profissionais, entre os quais 61% ocupam cargos de liderança em suas organizações. ATE A PANDEMIA... 35% 25 adotavam home Office ao menos uma vez ao ano % adotavam home office ao menos uma vez na semana 29 % nunca haviam trabalhado em home office NA COMPARAÇÃO HOME OFFICE X ESCRITÓRIO 31 12 15 3 % se dizem mais produtivos em home office % significativamente mais produtivos , j% dizem ter a mesma produtividade % menos produtivos em home office % significativamente menos produtivos 30 [BRASIL-H JUNHO DE 2020* PRETENDE PROPOR AO SEU UDER SEGUIR TRABALHANDO REMOTAMENTE DEPOIS DA PANDEMIA? % % % SIM NAO TALVEZ SOCIABILIDADE, LIDERANÇA E FOCO % não acham necessário se encontrar com colegas para seguir trabalhando remotamente % sentem falta de interagir pessoalmente com colegas dizem que seus líderes são eficazes em ajudar no trabalho remoto reclamam de distrações na rotina de home office. / 1 ■ 1 V 1 _ ■ ^ J 1 « se dizem mais produtivos em home office e 12%, significativamente mais produtivos. "Empresas com cultura inovadora e experimental costumam ter mais sucesso nessa transição", destaca. Exemplo disso é a consultoria Accenture. Em menos de duas semanas, a multinacional colocou mais de 500 mil funcionários em trabalho remoto e foi a primeira organização do mundo a ter meio milhão de pessoas utilizando o Microsoft Teams. Diretor-executivo de tecnologia da Accenture para América Latina, Fernando Teixeira destaca que muitos clientes temiam adotar o modelo: "Em empresas mais tradicionais havia a crença de que não sobreviveriam". O medo, diz ele, está relacionado especialmente à queda de produtividade, algo que pode ser contornado com ferramentas de avaliação de desempenho e uma liderança eficaz. A valorização do tempo trabalhado, e não dos resultados alcançados, é uma cultura típica de empresas com visão dogmática. Quem diz isso é Daniel Castanho, CEO do grupo Ânima Educação. "Se esses negócios já estavam com seus dias contados antes, agora mesmo é que esse tempo será acelerado." EDUCAÇAO: CONECTIVIDADE E PENSAMENTO DIGITAL Não foram só os adultos que tiveram de migrar os seus afazeres para casa. Crianças e jovens acabaram impelidos a fazer o mesmo. Foi assim que a pandemia disseminou o ensino a distância expondo tanto seus benefícios quanto suas fragilidades. Na educação superior, a modalidade vinha superando desconfianças e atraindo milhares de alunos. Mas na rede básica se tratava de uma novidade, pois apenas em 2018 o governo regulamentou a EaD e unicamente para o Ensino Médio. 31 CAPA Em abril, o Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb) consultou as secretarias de educação de 3.011 cidades e de 21 estados para saber como pretendiam reagir à quarentena. O resultado mostrou uma dura (e esperada) realidade: 60% dos municípios não tinham traçado uma estratégia de ensino remoto, sendo que 40% deles nem sequer dispunham de recursos tecnológicos para isso. A primeira reação das escolas foi adiantar férias e recessos para ganhar tempo. Ou então suspender as aulas. Para Lúcia Dellagnelo, diretora-presidente do Cieb, a situação é fruto de um problema que antecede o coronavírus: a falta de experiência das escolas na incorporação de tecnologias em sala de aula. Nesse sentido, existem dois gargalos para o ensino remoto avançar na rede básica mesmo como um mero apoio. O primeiro é o despreparo dos professores. "Os cursos de Pedagogia não enfatizam o saber ensinar com tecnologia", diz Dellagnelo. Já o segundo, infraestrutura digital deficiente, penaliza em especial estudantes de baixa renda. "O acesso à internet é essencial para se exercer direitos básicos como a educação." A Organização das Nações Unidas (ONU) defende, desde 2011, a conectividade como um direito humano fundamental. Países como Espanha e Estônia levaram essa recomendação a sério e hoje são referência na oferta de internet pública o que faz a diferença para muitas crianças e jovens que precisaram estudar em casa na quarentena. No Brasil, as limitações de conexão e o despreparo dos docentes levaram o poder público a utilizar toda sorte de estratégias. Em estados como Amazonas, Maranhão e Paraná, uma das saídas foi transmitir aulas pela televisão. Em outros locais, o rádio foi a opção. Essas soluções, no entanto, devem ser encaradas de maneira circunstancial. "Aprendizagem não é apenas transmitir conteúdo. Precisa ter interatividade, mediação, discussão entre pares", defende Dellagnelo. Mestre e doutora em Educação pela Universidade Harvard, ela sugere que no pós-pandemia o governo desenvolva programas para subsidiar a conectividade. "O primeiro problema a resolver é dar equidade de acesso." Criado sem fins lucrativos em 2016 para promover a inovação na educação pública, o Cieb difunde o conceito de "escola conectada". Muito além dos laboratórios de informática popularizados duas décadas atrás, a ideia é desenvolver equipes com competências digitais, dispor de equipamentos de conectividade em sala de aula e de recursos tecnológicos alinhados ao currículo. Daniel Castanho, da Ânima, 32 [BRASIL-H JUNHO DE 2020* Foto: Ânima / Divulgação FUNDAMENTOS PARA O NOVO NORMAL Em meio à pandemia, a McKinseypublicou o relatório O futuro não é mais o que costumava ser: pensamentos sobre a forma do próximo normal. Sustentado por sete princípios que deverão moldar o mundo daqui para frente, o documento traz orientações para líderes conduzirem seus negócios durante e depois da crise. Confira os ensinamentos: 1. A VOLTA DA DISTÂNCIA A partir da década de 1990, o avanço tecnológico e especialmente a internet encurtaram distâncias e impulsionaram a globalização. Se de uns anos para cá o mundo já experimentava uma redução nesse movimento, a perspectiva agora é de mais restrições nas fronteiras, com maior preferência a produtos e serviços locais. 2. RESIDÊNCIA PARATER EFICIÊNCIA Mais do que ajustar o modelo de negócio, muitas organizações precisarão repensá-lo completamente e até descobrir outras maneiras de se sustentar. Acima de tudo, a capacidade de absorver um choque e sair dele ainda melhor (ou seja, a resiliência) será fundamental para quem deseja sobreviver e prosperar em longo prazo. 3.0 BAIXO CONTATO AVANÇA Três segmentos da economia experimentam um momento decisivo e têm tudo para sair da pandemia fortalecidos: comércio eletrônico, telemedicina e automação. Mesmo que a maioria das atividades retorne a um estado de quase normalidade, já é possível imaginar um mundo com operações guiadas pelo contato humano reduzido. 4. A ETERNA MÃO DO ESTADO Em situações dramáticas, a sociedade fica mais disposta a aceitar o maior controle do governo na economia. Foi o que aconteceu quando os EUA injetaram recursos para salvar empresas em 2008. E é o que tem acontecido agora, com governos destinando trilhões de dólares para apoiar empresas e cidadãos, preservando empregos e oferecendo renda básica. 5. O VALOR DAS ORGANIZAÇÕES Antes mesmo do coronavírus já havia um questionamento crescente quanto ao que efetivamente deve ser a geração de valor de uma empresa. Ou seja, deve-se apenas investir e trabalhar com objetivo de colher mais dividendos? Alinhado à tendência de investimentos mais responsáveis, o conceito do triple bottom line baseado no trinômio lucro, pessoas e planeta já está sendo alçado a novos patamares de importância. 6. DA INDÚSTRIA AO CONSUMO, TUDO PODE MUDAR Os efeitos da pandemia estão criando novos hábitos na sociedade, com reflexos na indústria e no consumo. As pessoas estão trabalhando de casa, estudando em casa, cozinhando mais. A dinâmica de cinemas, restaurantes, eventos e casas noturnas será a mesma? As maiores incertezas pairam sobre os millenials e a geração Z, que contemplam pessoas nascidas entre 1980 e 2012 e são mais suscetíveis a novos costumes. 7. O QUE RESTA DE POSITIVO A comunicação é uma necessidade natural do ser humano. Mesmo que inúmeras atividades acabem sendo transpostas para o mundo digital, indivíduos, comunidades, empresas e governos precisam buscar as melhores formas de fazer essa transição não apenas de maneira inovadora, mas também inclusiva. ONDE A EAD ACONTECE Entre 2009 e 2018, o crescimento da educação a distância no ensino superior brasileiro foi de 145%. No mesmo período, as matrículas presenciais caíram 2,1%. Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) Nos últimos dois anos, o número de startups de educação (as edtechs) cresceu 23% no Brasil. Fonte: Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb) e Associação Brasileira de Startups (ABStartups) Segundo Peter Diamandis, fundador da Singularity University, os investimentos em edtechs no mundo ultrapassaram os US$ 18,6 bilhões em 2019. Em um cenário impactado pela pandemia, ele acredita que esse valor possa chegar a US$ 400 bilhões em 2025. defende que tanto escolas quanto universidades adotem o que ele chama de pensamento digital e não digitalizado. "Não basta mandar um texto por e-mail. Isso não muda nada. É preciso ter mentalidade digital, trabalhar colaborativamente." Hoje com 140 mil alunos, a Ânima foi criada em 2003, já inserida no contexto do ensino a distância. Não surpreende o grupo ter lançado, no começo de 2020, um vestibular online. Por meio de um aplicativo com ferramentas para evitar fraude (como reconhecimento facial), os candidatos respondem a questões discursivas diretamente pelo smartphone. No país onde milhões de crianças não conseguem acompanhar aulas remotamente, a educação superior a distância vive outra realidade. Conforme o último censo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), vinculado ao Ministério da Educação, as matrículas de EaD cresceram 145% entre 2009 e 2018. Enquanto isso, as presenciais recuaram 2,1%. Dentro de uma conjuntura muito mais evoluída em relação à educação de base, as universidades debatem outros tipos de abordagens para o novo normal. "Currículo híbrido, ensino a distância, isso tudo acabou. Estamos falando de aprendizado com uso de tecnologia", salienta castanho. Para ele, o novo papel das instituições de ensino superior se estrutura em dois pilares: a transformação dos professores e a criação de ambientes de aprendizagem a exemplo dos espaços maker e de prototipagem. "Assim, o aluno não irá mais cursar Administração ou Engenharia, e sim um conjunto de na no cursos que fará mais sentido para a trajetória dele", prevê. FILANTROPIA: CULTURA DE SOLIDARIEDADE A reflexão da sociedade e do mundo corporativo sobre a tragédia do coronavírus se transformou em uma onda de solidariedade inédita no Brasil. Em apenas dois meses do começo de abril a meados de junho a Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) contabilizou mais de R$ 5,6 bilhões em doações para combater a Covid-19. Detalhe: nessa soma entram apenas valores anunciados publicamente e envolvendo dinheiro. Ações de empresas comprando alimentos ou fabricando álcool em gel, luvas e máscaras, por exemplo, não são contabilizadas. A estimativa de Márcia Woods, presidente do Conselho Deliberativo da ABCR, é de que, a cada cinco avisos de 34 [BRASIL-H JUNHO DE 2020* 0 BRASIL NO ÍNDICE GLOBAL DE SOLIDARIEDADE 6o Canadá 7o Reino Unido 8o Holanda 5o Irlanda Io Estados Unidos O World Giving Index 2019, elaborado pela Charities Aid Foundation com indicadores da Callup, considera o agregado dos resultados de 126países entre 20092019. O computo envolve 740 Brasil 6 dados relativos a recursos doados, trabalho voluntário eajuda direta. 126° China 2o Mianmar ,A 9°SriLankaò d) 10° Indonésia 4o Austrália 3o Nova Zelândia doações que a entidade recebe, apenas um tenha valoração monetária. Ou seja, 80% da filantropia não envolve transferência direta de recursos. "O volume, na verdade, acaba sendo muito maior do que 0 registrado pelo Monitor de Doações", explica. A ideia de registrar as doações tem origem no movimento feito por grandes empresas ao doarem volumes atípicos para a filantropia no país. De acordo com 0 Cife, uma associação de investidores sociais do Brasil, as doações no país somaram R$ 3,2 bilhões em 2018. Um dos primeiros gestos a chamar atenção foi do Itaú Unibanco, que anunciou R$ 200 milhões e depois subiu para R$ 1 bilhão recursos que financiam 0 Todos pela Saúde. O cenário criado pelo coronavírus foge à realidade nacional, já que 0 Brasil aparece apenas na 74a posição entre os 126 países do último índice Mundial de Solidariedade da Charities Aid Foundation. O ranking analisa três fatores: ajuda a pessoas na rua, doações de recursos para ONGs e trabalho voluntário envolvendo ONGs. Woods, da ABCR, celebra 0 senso de resposta e 0 espírito solidário dos brasileiros. "A crise também mostra que a sociedade civil organizada pode contribuir com 0 país", diz ela. Já Marina Cançado, fundadora da Converge Capital, plataforma que fomenta 0 amadurecimento de investimentos sustentáveis no Brasil, destaca que a origem das doações não se restringe a grandes corporações. "Os recursos vieram de todos os lugares e bolsos e, além de dinheiro, milhares de pessoas se mobilizaram e dedicaram muito tempo para que a ajuda chegasse aos destinos." O cenário de exposição das marcas engajadas com a filantropia, e mesmo de pessoas famosas, é visto como altamente positivo. Na opinião de Woods, isso rompe uma cultura vinculada à formação religiosa do brasileiro, conforme a qual a prática da filantropia precisaria ser recatada. "Não se deve ter vergonha de dizer publicamente que doa." Em países como Estados Unidos e Inglaterra, quem contribui com causas sociais, em geral, fala para amigos, familiares, e é reconhecido pela sua comunidade. Como legado para a pós-pandemia (e mesmo durante), a porta-voz da ABCR espera que se retome a atenção a outras áreas da filantropia, como educação e desigualdade social. E mais: que 0 governo encare 0 setor como um parceiro estratégico algo que poderia começar pela revisão de tributos que incidem sobre doações. B-f 35 CAPA