Não há condições, no momento, de um retorno seguro às atividades escolares, sem o risco de agravar a pandemia. O ano letivo parece perdido, comprometendo uma geração inteira de estudantes. O grande desafio do País será o resgate do déficit no aprendizado. De uma forma ou de outra, o novo modelo de ensino será híbrido (presencial e à distância), como nunca ocorreu antes Capa/Educação 0 RISCO DE UMA CATÁSTROFE GERACIONAL Não, ainda não é hora de voltar às aulas. O risco de contágio pelo coronavírus continua altíssimo. Mas como será o futuro? Como ficará o processo de aprendizado? Estamos perdendo tempo? Alguns dos principais pesquisadores do assunto no País dizem que para sair dessa enrascada educacional e pavimentar uma retomada sólida nos próximos meses, será preciso desenvolver, daqui para frente, novas modalidades de ensino híbrido, que combina atividades presenciais e não presenciais. O maior problema, porém, é que no Brasil há milhões de estudantes digitalmente excluídos, que estão, no momento, sem qualquer atividade escolar Vicente Vilardaga e Mariana Ferrari Capa/Educação A pandemia e o isolamento sodal colocaram a educação num impasse. Ou ela se transforma, porque o velho mundo acabou, ou ela não vai mais funcionar. As coisas nunca mais serão como antes e é preciso recuperar o tempo de aprendizado que está sendo perdido e estabelecer uma estratégia de retomada. É um momento de alta tensão, mas há luz no horizonte. Será necessário um trabalho duro e capacidade inovadora para superar as consequências do isolamento prolongado e oferecer para as crianças e adolescentes novas perspectivas de ensino. A volta das atividades presenciais está se iniciando em algumas cidades e, em outras, existe muita incerteza e preocupação sobre um eventual retorno. Mas independentemente do momento da retomada, o ensino, daqui para frente, se tornará cada vez mais híbrido, combinando atividades presenciais e não presenciais. SEGURANÇA Na volta às aulas, em Manaus, funcionários de escola pública medem a temperatura dos alunos: crianças têm alta carga viral 40 ISTOÉ 2641 26/8/2020 DÚVIDAS Na casa da família Portella o ensino à distância não é totalmente eficiente: aprendizagem defasada sem o convívio das salas de aula O problema é que no Brasil há uma desigualdade gritante e milhões de alunos de todos os níveis estão excluídos digitalmente. Calcula-se que um quinto dos estudantes brasileiros estejam, hoje, sem realizar qualquer atividade escolar. O desafio que se tem pela frente é mundial e tão grave, que, há duas se manas, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Antônio Guterres, disse que o mundo está diante de uma "catástrofe geradonal" por causa da interrupção ou da precarização das aulas em todo o mundo. Segundo Guterres, até meados de julho, as escolas estavam fechadas em 160 países, afetando diretamente mais de 1 bilhão de estudantes. Pelo menos 40 milhões de crianças perderam a pré-escola neste ano. "Agora, encaramos uma catástrofe geradonal que pode desperdiçar incontável potencial humano, prejudicar décadas de progresso e exacerbar desigualdades entrincheiradas", disse o secretário geral da ONU, ao lançar a campanha "Salve nosso Futuro". "Assim que a transmissão local de Covid-19 estiver sob controle, colocar os alunos de volta às escolas e instituições de ensino, com o máximo de segurança possível, precisa ser uma prioridade", disse. Apesar de prioritária, não há consenso de quando e de que forma ela deve ser feita. Tudo depende da evolução da pandemia. E, por enquanto, o risco é alto e não vale a pena arriscar. Pesquisa do Instituto Datafolha mostra que 79% da população são contra uma abertura precipitada. "Para que haja a volta às aulas é necessário que a transmissão esteja em queda", afirma o infectologista Leonardo Weissmann, médico do hospital Emilio Ribas e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). "E a situação ainda está fora de controle". Manaus (AM), lugar onde, segundo a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, já se verifica uma tendência de desaceleração da pandemia, foi a primeira capital do País a tomar a decisão de reabrir as escolas públicas e privadas, na segunda-feira 10. Vários cuidados estão sendo tomados, como regras de distanciamento, uso de máscaras, medição de temperatura, recomendação de lavagem frequente das mãos e disponibilidade de álcool em geL Mesmo assim, o sentimento de risco de infecção é alto e se percebe um medo generalizado dos alunos de voltar a frequentar as aulas. "É um grande desafio fazer com que as crianças respeitem as regras durante todo o tempo", diz Weissmann. Um estudo recém-concluído pela Escola de Medicina da Universidade de Harvard mostra que as crianças têm alta carga viral e podem ser mais contagiosas do que adultos. Na capital amazonense, retomaram às aulas cerca de 110 mil estudantes do ensino público e 60 mil do privado. Em São Paulo, o prefeito Bmno Covas descartou a reabertura das escolas antes de outubro. No Rio de Janeiro, as aulas presenciais estão previstas para voltar dia 15 de setembro nas escolas privadas e dia 5 de outubro nas públicas. "Temos pouco conhecimento sobre a Covid-19 e por isso a população está contra a volta das escolas. Há insegurança e incerteza", diz Raquel Teixeira, conselheira do Conselho de Gestão de Educação do governo de São Paulo. A capital paulista chegou a anunciar a retomada do ensino presencial, mas a reação negativa fez com que a medida fosse adiada. A volta, antes prevista para o dia 8 de setembro, será dia 7 de outubro. Baseado em pesquisas e análises de profissionais da área, o governo estadual optou pela autonomia dos municípios na gestão da crise. "Talvez, em um primeiro momento, a escola fique disponível para um, dois, três alunos e professores que precisem usufruir de uma boa internet e melhor infraestrutura", prevê. Para a educadora Maria Helena Castro, membro do Conselho Nacional de Educação (CNE) e presidente da Associação Brasileira de Avaliação Educacional (Abave), o ponto de partida da retomada das aulas é o respeito às decisões das autoridades sanitárias. "A preocupação da ONU com uma catástrofe é real e o maior problema imediato que temos é a evasão “O ano não está perdido. Os alunos estão desenvolvendo novas habilidades socioemocionais e se familiarizando com atividades remotas” Maria Helena Castro, membro do CNE FOTOS: YAGO FROTA/PHOTO PREMIUM/FOLHAPRESS: GABRIEL REIS 41 Capa/Educação DISPERSÃO Catarina (à frente), Eduarda e João: rotina de estudos tumultuada e dificuldade de acompanhamento de atividades não presenciais dos alunos do ensino médio", diz. "Estudantes mais vulneráveis, com dificuldade de acesso à internet, poderão ser prejudicados pelo resto da vida". Em 2018, o índice de abandono, no primeiro ano do ensino médio, foi de 28%. Os desistentes, em geral, são adolescentes com atraso escolar e idades que variam de 16 a 18 anos. A pressão sobre esse grupo, que já é alta, devido ao abandono da escola para entrada no mercado de trabalho, se intensificou mais com a pandemia e causou perda de motivação e dificuldades adicionais para continuar nos estudos. Segundo Maria Helena, a desistência nessa fase da vida estudantil é verificada em várias partes do mundo. Em Nova York, diz, 20% dos alunos abandonaram o curso. MAOR DESIGUALDADE Maria Helena também destaca que se a retomada não for bem feita pode aumentar a desigualdade escolar, um problema grave do sistema de ensino. Atualmente, 85% dos 48 milhões de estudantes brasileiros estão em escolas públicas. É esse grupo que está sendo mais afetado pela interrupção das atividades presenciais. Nas escolas privadas, que contam com as ferramentas necessárias para desenvolver atividades remotas, os avanços em direção a um modelo de ensino híbrido foram intensificados. Há, também, apoio de consultorias, prestadas por hospitais como Albert Einstein e Sírio libanês, para estabelecer protocolos de retomo personalizados. Na rede pública, porém, a situação é diferente e bastante desigual. Além do ensino médio, os alunos de alfabetização também formam um grupo com alto risco de sofrer graves prejuízos com a interrupção das atividades presenciais. São estudantes que precisarão de uma educação intensiva e de um plano individual de recuperação. "O ano não está completamente perdido, os alunos estão desenvolvendo habilidades sodo emocionais e se familiarizando com atividades remotas e íntegra- FUTURO INCERTO O QUE PENSAM... OS PAIS Ainda que esgotados e temerosos, eles não se sentem seguros para a retomada do ensino presencial. Entendem que as aulas online não têm o mesmo peso das salas de aula, mas a proliferação do vírus faz com que prefiram esperar a queda dos ainda assustadores números da pandemia. OSALUNOS Os estudantes estão balançados com duas questões importantes: falta de concentração e medo de contaminar parentes. Uma coisa é certa, para eles, o ensino à distância não tem a mesma eficácia na aprendizagem do que o olho no olho. No começo estavam animados e, agora, não aguentam mais a tecnologia. OS PROFESSORES Trabalho dobrado. Essa foi a rotina dos educadores depois do início da pandemia. Indo de encontro a tudo o que esses profissionais estavam acostumados que era, justamente, o convívio social ao lado da aprendizagem. As aulas online estão sendo desgastantes. E para a retomada, eles entendem que é necessário pensar caso a caso. OS INFECTOLOGISTAS Ainda não é o momento de volta às aulas, já que a transmissão do coronavírus continua em alta. O convívio entre os alunos nas escolas é um fator de propagação da doença e ameaça não só os próprios estudantes, como seus familiares e professores. Teme-se que as crianças e os adolescentes desrespeitem as regras de proteção. 42 ISTOÉ 2641 26/8/2020 INFOGRÁFICO: GERSON NASCIMENTO FOTOS: RODRIGO ZAIM: LEO CALDAS tivas", diz Maria Helena. "Daqui para frente, o grande desafio da escola pública será garantir a conectividade". Na zona sul da capital paulista, Catarina, Eduarda e João, 11,8 e 6 anos, respectivamente, vivem o ensino à distância de maneiras distintas. João, o caçula que está em fase de alfabetização, é o polo mais fraco quando a questão é estudo remoto. A pouca idade faz com que ele fique irritado e disperse muito mais rápido do que os outros irmãos. Para João, computador virou sinônimo de incômodo. A tela não é atrativa, os amiguinhos estão distantes e o professor já não mais acompanha ao vivo o seu desenvolvimento. "Dos meus três filhos, o João é o que mais está sofrendo, principalmente porque ele está começando a vida escolar", diz Paulo Curio, diretor executivo do aplicativo iFood. Dentro do apartamento, Curio pôde observar o ensino remoto pela perspectiva de três faixas etárias diferentes e viu que, com os mais velhos, ela é eficaz. De qualquer forma, a rotina está tumultuada. E a imediata volta às aulas é descartada. "É muito difícil não ter essa vontade para que eles voltem, mas gostaria de um horizonte mais daro. Não tem a menor possibilidade de a escola ser normal até todo mundo estar vacinado", diz Curio. "Um legado da pandemia será o ensino GUERRA AOS LIVROS Se já não bastasse o conturbado cenário do ensino brasileiro, o ministro da Economia Paulo Guedes propôs uma reforma tributária que prevê uma taxação de 12% em livros, que eram isentos de impostos desde 2004. Detalhe: em um País em que a média de leitura é de somente dois livros por ano. Ainda assim, o ministro diz que isso beneficiaria a economia porque os consumidores pagarão mais impostos. Só que a matemática desse cálculo é clara: livros mais caros, menos leitores. “Um legado da pandemia será o ensino híbrido, a integração da tecnologia com a aprendizagem presencial” Mozart Neves, professor da USP híbrido. Vamos integrar a tecnologia com a aprendizagem presencial", diz Mozart Neves, professor catedrático da USP. O coronavírus está possibilitando um jogo de tentativa e erro para a construção de um novo modelo escolar. As mudanças feitas no susto, a partir da pandemia, poderão se tomar um bom caminho para traçar novas metas e possibilidades de desenvolvimento para os alunos. A tecnologia, antes vista como adversária de um modelo tradicional, passou a ser a principal aliada de estudantes e professores. Sendo assim, o ensino presencial e o não presencial passarão a andar juntos. "O mundo digital fáz parte do século XXI. Dizer que isso não fará parte da educação daqui para a frente é desconsiderar tudo o que foi feito ao longo da pandemia", diz Neves. A ideia é transformar o aluno em tempo integral, para que os recursos presenciais e tecnológicos andem lado a lado, de forma a melhorar o desempenho. "Só o online não funciona, mas uma junção dos dois seria uma melhora importante", diz Rodrigo Portella, estudante de 15 anos da rede privada que não vê a hora de retomar as atividades. "Eu só aprendo 40% com o conteúdo tecnológico". A empresária e mãe do adolescente, Juliana Portella, acompanha o desespero do filho de perto e, por isso, acredita que o ano letivo só será recuperado em 2021. "Se as escolas em São Paulo reabrirem agora serão só três meses de aulas antes das férias, o que vai impactar no aprendizado", diz. Mesmo em meio a uma terrível crise sanitária, está todo mundo descobrindo novas formas interativas e interessantes de ensinar e aprender à distância. Ainda que o quadro de enorme desigualdade educacional que existe no Brasil tenda a se agravar e o risco de uma catástrofe geracional seja real, a experiência da pandemia contribui para transformar a escola, num movimento sem volta. Silendosamente, a educação está sendo reinventada. ■ RETOMADA Agentes sanitários fazem a desinfecção em pátio de escola pública em Taguatinga (DF): pandemia pode aumentar o gargalo da alfabetização FOTO: ERALDO PERES/AP PHOTO 43