CORONAVÍRUSl Em meio a temores e incertezas, a nova ameaça chega ao Brasil e continua alimentando o que há de melhor (e pior) na humanidade por ANDRÉ BIERNATH | design EDUARDO PIGNATA fotos GETTYIMAGES | ilustrações THIAGO ALMEIDA 40 • SAUDE E VITAL OQUE PODEMOS APRENDER COM ELE? No dia 2 de março de 2019, os biólogos chineses Yi Fan e Peng Zhou, do Instituto de Virologia de Wuhan, publicaram um artigo científico que não teve grande impacto na comunidade acadêmica internacional, tampouco chamou a atenção da imprensa e de autoridades. Mesmo assim, há uma frase logo no primeiro parágrafo que hoje causa espanto pelo tom premonitório: "É altamente provável que surtos futuros de coronavírus se originem de morcegos, e há uma probabilidade maior de que isso ocorra na China". Nem o mais pessimista dos futurólogos poderia imaginar que, em menos de dez meses, a previsão se tomaria realidade com tamanha exatidão: a descoberta de um novo coronavírus, batizado de SARS-CoV-2, virou a preocupação mundial de 2020. As notícias começaram a brotar nas últimas semanas de 2019, quando médicos notificaram um aumento do número de crises respiratórias na cidade de Wuhan, na porção leste da China. Poucos dias depois, já se sabia que o quadro misterioso era provocado por um tipo desconhecido de coronavírus, da mesma família de agentes que estiveram por trás das epidemias de Sars (sigla para síndrome aguda respiratória grave), em 2002, e Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio), em 2012. Até o fechamento desta edição, eram mais de 111 mil casos e 3 800 mortes pela doença chamada de Covid-19. Embora a vasta maioria dos infectados esteja concentrada na China, as notificações já se estendem por 110 países, e o Brasil confirmou o primeiro infectado no dia 26 de fevereiro. Apesar de os sintomas serem leves 85% das vezes, idosos e sujeitos com doenças crônicas, como asma e diabetes, estão mais vulneráveis a complicações e morte. Outro temor é a possibilidade de o vírus ser transmitido de pessoa para pessoa numa fase inicial, quando não há sintomas, o que dificultaria o controle. Diante de um contexto tão instável, que lições podemos tirar dessa história, inclusive para contornar uma ameaça que ainda não foi vencida? © SAÚDE É VITAL • MARÇO 2020 • 41 A história do cruzeiro Diamond Princess dá uma dimensão da seriedade do assunto: o navio viajaria pelo Sudeste Asiático, mas precisou ficar desde o dia 5 de fevereiro atracado em Yokohama, no Japão, após quatro passageiros serem diagnosticados com o coronavírus. Na quarentena, que foi alvo de severas críticas dos médicos que realizaram visitas ao navio, a doença se espalhou para outros 700 passageiros, cerca de 20% do total de turistas e tripulantes. A boa notícia é que as autoridades estão formulando respostas com uma rapidez nunca antes vista. "Em menos de duas semanas, já se sabia qual era o vírus e suas informações genéticas", observa o infectologista Celso Granato, do Fleury Medicina e Saúde. A título de comparação, a aids despontou nos anos 1970 e o HIV, seu causador, foi descoberto em 1983. Mais recentemente, o zika tocou o terror no Brasil em 2016. Mas ele circulou anônimo por quase um ano e só chamou a atenção após o aumento nos casos de microcefalia em bebês. O comportamento da China durante essa crise, aliás, é digna de elogios. Em 2002, no surto de Sars, que também se iniciou por lá, eles demoraram um tempão para avisar o resto do mundo. O erro não se repetiu em 2020. Entre as ações tomadas pelo governo chinês, destacam-se a construção de um hospital de mil leitos em dez dias e a operação de isolamento de Wuhan, que tem 11 milhões de habitantes (o mesmo que São Paulo). Nessa linha, órgãos internacionais adotaram uma postura firme e enérgica: a Organização Mundial da Saúde (OMS) logo decretou emergência pública internacional, o que incentivou as nações a criarem planos de contingência. Jornais científicos deram acesso livre e gratuito a todas as publicações com descobertas sobre o coronavírus. Governos de países ricos ajudaram os mais pobres nas medidas de precaução. "Só vamos sair dessa por meio da cooperação e do trabalho em conjunto", acredita a médica Nancy Bellei, da Sociedade Brasileira de Infectologia. © Q 5 9"$ 2 5 § O > Q Q o <3 §> S2 o £ < o 3 UJ Q j O PERFIL DO CORONAVÍRUS Essa família viral está no planeta há 300 milhões de anos — ela é mais antiga que os dinossauros! morcego coronavírus IA ENTIDADE O coronavírus recebeu esse nome porque parece ter uma coroa em sua superfície quando visto no microscópio. Ele é comum em vários países, inclusive no Brasil. 42 • SAÚDE É VITAL ■ MARÇO 2020 célula nariz 2 INTERMEDIÁRIOS O SARS-Cov-2, o coronavírus da epidemia atual, veio de morcegos. Existe a suspeita de que ele passou por um mamífero chamado pangolim antes de afetar humanos. boca 3 PORTAS DE ENTRADA O novo vírus invade o corpo pelos olhos, pelo nariz ou pela boca. Ele foi aspirado pela primeira vez a partir das fezes de algum animal, muito provavelmente num mercado da cidade de Wuhan. copias de vírus 4 SENHA CORRETA O coronavírus se conecta ao receptor ACE2, que fica na superfície das células. Após o ataque, ele usa o maquinário celular para produzir um monte de cópias de si mesmo. vírus 6 GRAVES REPERCUSSÕES Até 15% dos pacientes acometidos pela Covid-19 vão apresentar complicações como dificuldade para respirar e pneumonia. Isso é mais frequente em idosos e portadores de doenças crônicas. 5 ESPERA SILENCIOSA A infecção fica de dois a seis dias sem dar sinal. Esse é o tempo que os vírus demoram para se replicar e dominar novas células. Aos poucos, ganham terreno até chegar aos pulmões. 7 ESPALHOU GERAL Estima-se que, numa situação sem controle ou isolamento, um sujeito com a moléstia seja capaz de transmiti-la para outras seis pessoas por meio de gotículas de saliva, tosses e espirros. pulmões SAÚDE É VITAL • MARÇO 2020 • 43 Claro que essa urgência, motivada por um vírus desconhecido e perigoso, tem seus efeitos adversos. A disseminação de notícias falsas é uma delas. Em aplicativos de mensagens como o WhatsApp, circula um monte de imagens que revelam milhares de mortos espalhados pelas ruas, indicando que a situação seria mais grave que o divulgado. Em paralelo, textos sugerem tomar chá de erva-doce para se resguardar da doença. Tudo lorota... A própria OMS chegou a classificar a situação com o coronavírus como uma "infodemia", ou epidemia de informações mentirosas. Teve até gente que se aproveitou do momento para levantar uma graninha. O dono de um centro de estética em São Paulo, que teve seu registro de médico cassado, postou um vídeo no Instagram oferecendo injeções de vitamina D para evitar a moléstia. Uma clínica de Minas Gerais passou a indicar sessões de ozonioterapia com a mesma finalidade. O absurdo é que não há comprovação de que esses tratamentos tenham efeitos contra a Covid-19. As fakes News são um verdadeiro crime na saúde, pois geram um pânico enorme na população", argumenta David Uip, coordenador do Centro de Infectologia do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. O biólogo e comunicador científico Atila Iamarino sabe bem como é lidar com esse mar de informações desencontradas. "Enquanto tudo está incerto, fica fácil vender um monte de certezas”, raciocina. Nas últimas semanas, ele vem produzindo uma série de conteúdos sobre o coronavírus em sua conta no Twitter, que tem mais de 180 mil seguidores, ou para o canal do YouTube Nerdologia, que agrega 2,6 milhões de inscritos. Apesar do caos, o especialista vê melhoras no controle de boatos e mentiras na internet. "Na epidemia de zika, o YouTube trazia quatro vídeos feitos por fontes confiáveis e o resto era tudo teoria da conspiração. Hoje, o site não mostra aos usuários conteúdos que não tenham sido feitos por órgãos oficiais ou veículos de imprensa", compara. Será que temos enfim uma luz no fim desse túnel? © DA PRA CONTER A EPIDEMIA? Parte da estrutura montada para enfrentar o coronavírus foi utilizada em outras doenças, como zika e ebola & < s 2 £■< 2? Z 2: z z IS £ o o u < < Q Z > 2 O < S< LIDERANÇA GLOBAL Quem coordena as ações entre os países é a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os técnicos e dirigentes acompanham os casos, reúnem informações e sugerem as medidas adequadas. 2 NOSSO PEDAÇO O Brasil montou um comitê emergencial, que congrega Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária e outros órgãos. Abaixo, algumas das ações tomadas por aqui: | “ ■J n |§ ! !< í «ã í < í 13 ~ 1 j- MATERIAL INFORMATIVO Pôsteres e folhetos com recomendações de saúde são entregues em aeroportos. PROTEÇÃO AOS FUNCIONÁRIOS Em fronteiras e postos de imigração, os empregados recebem óculos e máscaras. AVISOS SONOROS Nos navios e cruzeiros internacionais, megafones emitem alertas em várias línguas. 44 • SAÚDE É VITAL • MARÇO 2020 3 PULGA ATRÁS DA ORELHA A situação é considerada suspeita quando alguém está viajando de uma região com casos confirmados e apresenta sintomas como tosse, febre e dificuldade para respirar. 4 SEM CONTATO COM O MUNDO O indivíduo passa então por uma avaliação com um especialista ainda no avião ou no navio. Depois, é encaminhado para isolamento em um hospital de referência da cidade de desembarque. HORA DA VERDADE Nesse período de internação, o paciente é submetido a uma série de exames. Se o resultado for positivo, ele fica em observação e recebe os tratamentos. Caso seja negativo, está liberado. O QUE FAZEMOS? Lavar as mãos com frequência é essencial, assim como cobrir a boca ao espirrar e tossir. As máscaras só são indicadas para quem já está doente e não quer transmitir o vírus. SAÚDE É VITAL ■ MARÇO 2020 ■ 45 Entre avanços e retrocessos, o episódio do novo coronavírus serve ao menos para reforçar mensagens valiosas de proteção à saúde, úteis inclusive contra outras doenças mais comuns, como o resfriado e a gripe. É importante, por exemplo, lavar as mãos com frequência, especialmente ao chegar em casa, trabalho ou escola. Na hora de espirrar ou tossir, cobrir a boca e o nariz com o braço (nunca com as mãos!). Se aparecerem sintomas leves, como mal-estar, nariz entupido e febre, ficar em casa para não transmitir a moléstia às pessoas ao redor. E, claro, só ir ao pronto-socorro se esses incômodos piorarem ou aparecerem sinais mais sérios, como falta de ar e confusão mental. Em última análise, a experiência atual com o coronavírus deixa a humanidade mais preparada para lidar com pandemias futuras. "Quer apareça na natureza, quer pelas mãos de um terrorista, segundo os epidemiologistas, uma doença transmitida pelo ar que se propaga rapidamente pode matar 30 milhões de pessoas em menos de um ano", alertou o empresário americano Bill Gates num discurso em 2018. Todos os acertos e erros dessas primeiras semanas de 2020 serão repetidos (ou consertados) para enfrentar novos vírus que surgirão em algum canto do planeta daqui a dois, cinco ou 20 anos. "Temos que integrar os sistemas de vigilância e desenvolver vacinas e remédios com mais rapidez”, chama a atenção o virologista Edison Luiz Durigon, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP). Por fim, o Covid-19 nos deixa uma rica lição sobre os cuidados com o meio ambiente. "Quanto mais preservarmos os ecossistemas, menor o risco de esses vírus saltarem dos animais silvestres para as pessoas", avalia o virologista Paulo Eduardo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP. Eis uma responsabilidade que passa por nossas ações individuais, pela pressão da comunidade e pelas decisões de governantes. O que está em jogo é, nada mais, nada menos, o próprio futuro da humanidade • AS ÚLTIMAS AMEAÇAS Nas duas décadas passadas, outros vírus assustaram o planeta e exigiram muito dos cientistas e das autoridades SARS Também se iniciou pela China. Foram 8 mil infectados e 800 mortes. Nenhum caso novo é notificado desde 2004. EBOLA Apesar de ter provocado surtos no passado, o estrago foi grande e preocupante na África Ocidental em 2014. GRIPE AVIÁRIA O vírus H5N1 pintou entre pássaros na Ásia e havia um grande temor de que ele pulasse de vez para os humanos. ZIKA Era visto como um primo fraco da dengue — até se descobrir no Brasil que estava por trás da microcefalia em recém-nascidos. 46 ■ SAÚDE É VITAL • MARÇO 2020 2002 -SARS China GRIPE SUÍNA De origem mexicana, foi declarada como pandêmica em junho de 2009, após afetar mais de 75 países de todos os continentes. SARAMPO Velho conhecido, estava eliminado de várias nações. Mas voltou a incomodar, começando por Europa e EUA. 2005-GRIPE AVIÁRIA Vietnã, Tailândia, Indonésia e Camboja 2009 GRIPE SUÍNA/H1N1 México 2012 MERS Jordânia e Arábia Saudita 2014 -EBOLA Guiné, Serra Leoa e Libéria 2015/2016 ZIKA Brasil 2015/2016 SARAMPO EUA e Europa 2015/2016 POLIOMIELITE Nigéria, Paquistão e Afeganistão.